Perguntas sagradas


Hierofante, do tarot do Dave McKean

Do grego: hieros “sagrado” + phainein “revelar, trazer à luz”


Em 2001, a jornalista do New York Times Natalie Angier escreveu um texto chamado “Confissões de uma ateia solitária”, sobre as dificuldades que enfrentava ao assumir seu ateísmo na era Bush.

Depois que eu tive a ideia para esse texto, demorei uma semana para realmente começar a escrevê-lo. Não exatamente para organizar as ideias na minha cabeça, mas para acalmá-las. Porque – e isso não é novidade para quem me conhece – esse me é um assunto sensível. Mas essa sensibilidade não é exclusiva. Na verdade, todo mundo é sensível a esse assunto. Já tive discussões homéricas com pessoas que nem sequer eram religiosas, por discordar de assuntos que simplesmente “não se discutem”. Porque, afinal, pode-se ser a favor do aborto, da pena de morte, do suicídio e da legalização das drogas e da prostituição, e isso é democrático. Mas se você é contra religiões, você é nazista.

Portanto, fica o aviso. Você pode se ofender com o assunto desse texto. Aliás, estatisticamente, você vai se ofender com o assunto desse texto. Mas, se mesmo assim quiser continuar a lê-lo, abre-se aqui o debate.

O que mais me preocupa quando entro em uma discussão a respeito da “fé” vs. “ciência” é que, frequentemente, as pessoas as colocam no mesmo pacote. Se você é ateu, você provavelmente já ouviu essa frase: “Se você quer acreditar na ciência e quer que os outros respeitem isso, também tem que respeitar a fé dos outros.” Vou colocar aqui, então, uma explicação simples, do Wiktionary em tradução livre (já que esse artigo não existe em português), sobre o que é o método científico, para estarmos todos na mesma página.

Método científico: método de descoberta, a respeito do mundo natural, baseado na criação de hipóteses, testadas empiricamente, desenvolvidas e revisadas para a constituição de teorias que melhor expliquem os dados conhecidos.

Em resumo, a ciência não depende de opinião. Qualquer hipótese deve, e é, testada e comprovada antes de ser considerada verdadeira. E ainda assim, está sempre disposta a ser revisada e, se necessário, desmentida. A fé não funciona assim. A fé baseia-se no oposto, na ausência de debate e questionamento; no crer, e fim. Portanto, “acreditar” na ciência não é o mesmo que “ter fé” na ciência, porque a ciência não exige fé. Ela exige lógica e, como qualquer outro homo sapiens sapiens, isso eu tenho. O que me incomoda em qualquer religião é exatamente a negação do que naturalmente nos diferencia dos outros animais: a racionalidade.

Porém, só muito recentemente, percebi algo que pode explicar essa frequente confusão entre “ter fé” e “acreditar”: professores de ciências ruins.

Podem parecer fenômenos não-relacionados, mas para muitas pessoas, provavelmente existe pouca diferença entre um sermão em uma igreja e uma aula de biologia. (Com a suposta diferença de que “bombar” no primeiro, significaria uma eternidade no inferno...). Se em algum momento elas perguntassem “mas por que isso é assim?”, a resposta, em ambos os casos, seria “porque está no livro”. Na religião, essa resposta faz completo sentido, já que os escritos da bíblia/torá/alcorão/etc. parecem ser provas suficientes para qualquer coisa. Em uma aula de ciências, isso é um crime.

Tolher o questionamento de uma criança é sinônimo de deseducar. É a antítese do método científico. Isso cria uma aceitação passiva, sem raciocínio. E entre um dado abstrato cuspido, e uma “boa história”, adivinha qual a criança vai escolher? Daí nascem os ‘museus criacionistas’ dos Estados Unidos.

Por falta de boa vontade, ou mesmo de conhecimento, sem querer, professores de ciências, que deveriam ser a maior expressão de uma sociedade humanista, contribuem para o aumento de pessoas passivas, supersticiosas e, quase consequentemente, religiosas.

O Iluminismo, heroi da Modernidade, foi substituído por um tacanho senso de respeito e tabu.

Mas eu tive bons professores de ciências. Portanto, eu não acredito que existam assuntos que simplesmente “não se discutem”. Como denuncia Richard Dawkins, as religiões têm sido protegidas por uma cortina de intocabilidade por tempo demais.

Eu sonho com um mundo e um tempo em que, em qualquer idade, é possível perguntar, questionar, debater qualquer assunto; em que as pessoas têm suas crenças porque chegaram a elas através de suas próprias conclusões, não de doutrinamentos; em que dogmas, superstições e violências causadas pelas religiões sejam deixados para trás; em que explicações sejam sempre buscadas; um mundo com bons professores de ciências.

Eu sonho com um mundo não tão solitário para uma ateia. Mas eu vivo neste.



ETA: Só pra constar. Eu não acho que apenas gênios, como o Saramago ou o Dawkins, possam blasfemar e serem respeitados. Venho por meio deste evocar meu direito à blasfêmia. Obrigada, tenha um bom dia.


Sessentindo:

Injustiçada


Audiovisuando: Richard Dawkins on militant atheism - TED talk

9 comentários:

  1. Pena que discussões pertinentes e contemporaneas do tempo da revolução francesa, do iluminismo, ja devidamente superadas, ainda sejam novidades escandalosas por essas bandas aqui né?
    Mas foi no alvo ao falar de professores ruins...aliás conheci legiões de biólogos formados..todos religiosos. E nao admitem arguição de incoerencia..

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  2. Se fosse uma discussão escandalosa só aqui no 3º mundo, eu até entenderia... O problema é que o maior país do mundo também foi tomado por essa loucura toda. Felizmente, parece estar se recuperando agora, passada a era Bush. Mas um MUSEU criacionista? É sacanagem... Cuspir na cara dos iluministas...

    Sobre os biólogos, é realmente bizarro eles estudarem teoria da evolução e acreditarem no genesis... Me preocuparia menos se houvesse reflexão por trás disso, do tipo "ok, então Darwin explica algumas coisas, mas pra isso, isso e isso, eu prefiro acreditar na bíblia", ou mesmo "eu não acredito no genesis, mas acredito num deus que possibilitou a evolução das espécies"... Mas se eles nem aceitam discutir, é porque alguma coisa tá errada e, em algum nível, eles devem saber...

    Tem uma frase, de autoria desconhecida, mas que eu gosto muito que é "Any belief worth having must survive doubt".

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  3. Vc não está tão solitária assim. Eu questiono as religiões quase que diariamente. Mas, aí eu penso que, como espírita, já presenciei tantas coisas "não-explicáveis" e sempre volto atrás. Professores ruins? Esses eu sempre questionei. Meu nome nunca foi muito bemvindo nas salas dos professores. Eu sonho com um mundo onde as pessoas questionem mais as coisas e os professores estejam mais conscientes do seu importante papel na formação de criaturas mais interessantes. E que o Brasil respeite seus professores como quem respeita uma mãe.
    bj e que sigam as polêmicas, afinal essa é a grande vantagem dos blogs. Na imprensa formal esse seu post não existiria.

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  4. Parte da minha família é espírita e também sempre conta casos "não-explicáveis". Eu me lembro de, criança, pedir zilhões de vezes pra ouvir essas histórias, como se fossem contos fantásticos ou de terror. Meus favoritos eram as experiências de vidas passadas. Até hoje não sei se eu acreditava, queria acreditar, ou gostava porque eram histórias interessantes... Mas pra quem contava eram certamente experiências verdadeiras, ainda que completamente subjetivas.

    Hoje em dia, eu prefiro (apesar de não garantir nada) chamá-los de casos não-expliCADOS. Da mesma forma como hoje sabemos que aquelas experiências que algumas pessoas relatavam de ver-se do teto do quarto de hospital, como se fosse a alma separada do corpo, é só um pequeno curto-circuito em um pedacinho do cérebro, eu espero que algum dia nós possamos explicar esses fenômenos relatados pelos espíritas. Se são mesmo espíritos, beleza, mas, como diria Carl Segan, eu não quero acreditar, eu quero saber.

    Btw, Julio, você é jornalista? Sinto uma revolta a respeito da imprensa... hahah

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  5. Falou,Falou e nao disse nada...as vezes queremos criar polemicas e nao paramos realmente para raciocinar o que estamos questionando e simplesmente questionamos...questionar por questionar nao tem nada de inteligente(por mais que possa parecer as vezes).Quem sabe cala,quem nao sabe é quem mais fala(e questiona).Obrigado,tenha um bom dia.
    P.S.: tentei postar no "Digestivo"e nao consegui.
    Joao Santos.

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  6. O que lhe incomoda é que a lógica também é uma opinião, encontrada em um universo pronto e funcionando há não sabe-se quanto tempo... se ele teve ínicio... se ele tem limites... se ele não faz parte de outros universos e dimensões... Não sabemos sequer se a inteligência humana é capaz de medir a existência, muito menos se a existência pode se enquadrar no sistema lógico. Você pode berrar a vontade, mas o fato é que a ciência não prova nada além do que sabemos e enxergamos: o óbvio. O realmente importante nunca será explicado por nenhuma continha matematica, astronomica, física, biologia, nada... estas doutrinas apenas medem o que elas têm a mão: elas não medem a mão, o local onde está a mão, a consciência com a qual se mede a mão, a consciência que mede a consciência medindo a mão... Não é possível uma coisa provar ela mesma, uma coisa olhar ela por fora, assim como o olho não se enxerga: ele enxerga o exterior e, na melhor das hipóteses, o seu reflexo no espelho (que não é ele). Sempre haverá um porque e os seus riscos. É como medir o final do universo: o universo não tem fim... Hay que tragarselo!... Durma com o seu ateismo e um barulho destes.

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  7. O Jefferson foi na jugular..ou como diz o dramaturgo espanhol Francisco Arrabal citado pelo Jodorowski "entre a ciencia e a religião fico com o misterio"..quer dizer, para uma porção de gente aceita-se coisas da ciencia como uma nova religião..

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  8. onde se lê Francisco leia-se Fernando, e nao contem pra ninguem que paguei esse mico..ok?

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  9. Ahn... Eu ia responder todo mundo, um por um, bonitinho. Mais aí os comentários foram acumulando (não que seja "nossa! 40 comentários!"), mas confesso que bateu uma preguicinha, até do tema em si.

    Então vou ser mais genérica e tentar, mesmo assim, chegar em todo mundo. Então eu só vou *dizer* duas coisas:

    Uma é que eu ACHO o seguinte. Imaginemos que estamos todos em um pequeno aquário na proverbial "mão de deus". Estamos aqui, nadando, e por sermos tão pequeninos, e deus tão enorme, não conseguimos vê-lo. Então nossa ciência, também só mede os assuntos do aquário: a temperatura da água, a sujeira, o estado dos peixinhos, etc. Ok, essa é a lógica do Jefferson ali em cima. Eu consigo aceitar essa lógica. Agora, o que me deixa confusa é as pessoas dizerem que deus "ouve suas preces E as atende". Opa. Calma, calma. Se deus interfere com tanta frequência no pequeno aquário, cada interferência deveria causar ONDAS na água, não? E, pela mesma lógica, essas ondas pelo menos, deveriam ser mensuráveis, não?
    Anyway, por isso que eu aceito melhor a história do "deus está dentro de cada um de nós", do que "deus é o universo e ele se importa com cada um de nós".

    But that's just me.

    A segunda coisa em que eu também acredito é que quando você visita alguém pela primeira vez, é educado trazer alguma coisa. Eu não aprecio como presente um bilhetinho semi-mal educado colado na minha parede. Agora, algum comentário, com algum conteúdo (para compensar a aparente falta dele no meu texto) é, e foi, bem-vindo.

    Btw, João, relaxa que cada vez que você tenta mandar um comentário pelo Digestivo, eu recebo um email igual.


    Obrigada aos outros meninos,

    Beijos,
    Larissa

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